HISTÓRIA, IDENTIDADE ÉTNICA E EXCLUSÃO SOCIAL NA REGIÃO DE SANTA CRUZ DO SUL (RS - BRASIL) *** Artigos opinativos e outros comentários selecionados pelo autor *** IURI J. AZEREDO

13 de jan. de 2014

O apartheid também é aqui

*Escrito em 19/12/2013

“Choremos Mandela, mas não esqueçamos as denúncias de Milton Santos, Abdias do Nascimento, Florestan Fernandes e tantos outros/as.”

Aproveitando o período [texto escrito na semana passada] ainda de manifestação de condolência e homenagens ao Mandela, vou colar aqui abaixo uns comentários meus. Faço isso para registrá-los mais explicitamente, já que, observei tristemente, alguns que postaram suas condolência e aderências às ideias e posturas “mandelaianas”, pelo jeito, não gostaram da minha manifestação, postada como apoio e colaboração. Fico pensando por qual razão, mesmo, se fez a exclusão? Há muitos limites ao debate. Falar em África DO SUL, lá do outro lado do mundo, tudo bem; mas em Santa Cruz DO SUL, aqui do meu lado? Aí não é bem assim... Sinto, sendo bem sincero, também, uma certa hipocrisia, um “aproveitar a ocasião” e “dizer palavras bonitas”, para “ser bacana”. Mas ir muito adiante, “concretizar” ou enxergar a própria casa, aí não, né? Há medos. E eu não vou dizer que sou imune.

Segue o que anotei em 06/12:

Que a gente se inspire em Mandela e façamos todos os dias nossa luta contra os “apartheid” que ainda vigora no Brasil e, óbvio, em Santa Cruz. A população negra é vitimada pelo racismo e muitos dados demonstram isso cabalmente, basta ver as médias salariais e os cargos/funções que a esmagadora maioria das pessoas negras ocupam. Fruto da mobilização, temos muitos avanços, caso das políticas como as cotas em universidades, que tentam acelerar uma justiça social, ferida pelos quase 400 anos de escravidão brasileira, quando os africanos e afrodescendentes foram desumanizados, tornados “objetos”, animais de ganho, com o apoio institucional massivo, incluindo igrejas e ciências. A abolição ainda não foi completada, porque “atirou” uma massa de pessoas ao “Deus dará”, após gerações e gerações trabalhando de sol a sol, sem indenização socioeconômica alguma e, suprema sacanagem, marcados pela discriminação (vagabundos, inconfiáveis, intelectualmente inferiores, libidinosos etc.). Enfim, choremos Mandela, mas não esqueçamos as denúncias de Milton Santos, Abdias do Nascimento, Florestan Fernandes e tantos outros/as. Abraços!


Também anotei em outro espaço de debate (felizmente, mantido) algo bem semelhante:

Bom debate [sobre artistas que representam o Brasil na recente cerimônia da Fifa na Bahia]. Mas acho que não é tão simples assim, tipo “qualquer um pode representar o Brasil, que vai ficar bom”. O racismo é coisa séria e precisa de uma abordagem com menos senso comum e mais Florestan Fernandes, Lilia Schwarcz, Milton Santos e o Fernando Henrique Cardos, o sociólogo do tempo do “Escravidão no Brasil Meridional”; mais informações estatísticas, estudos bem abalizados, a partir de fontes fidedignas (IBGE e Ipea), para não apelar a sentimentalismos e vir com dados técnicos. Somos um país racista. Mandela morreu, todo mundo chorou, mas após condolências até do pessoal da KKK, tudo parece voltar a “normalidade” do apartheid nosso de cada dia. Temos um problema não superado. Ou não? Exemplo: Até dois anos atrás, as turmas de medicina da UFRGS, desde 1898 (mais de 110 anos), não tinham praticamente estudantes negros, muito menos, negras (precisou chegar as cotas). E por que isso de não ter negros/as? Por que os pretos são intelectualmente inferiores? Mesmo que alguns tenham vontade de afirmar isso, a verdade é que (vou me repetir outra vez, perdão) se trata do produto social dos quase 400 anos (quatrocentos anos) de escravidão – sistema que gerou a riqueza, sustentou o país e subsidiou projetos de colonização europeia, como em Santa Cruz do Sul (enquanto os mesmo trabalhadores, em 1888, são atirados “a deus dará”, sem terras, sem indenização alguma e com a pecha de “vagabundos” após gerações de relho, suor e sangue – e toda a desumanização que tal regime implicou, fazendo das pessoas afrodescendentes animais comercializáveis, subespécie, coisas. Então, mesmo considerando que possa haver “histeria” por um lado, há também algo importante sendo dito quando se substitui “morenos” por loiros. Não se estará tentando reafirmar uma brancura num país de maioria esmagadora negra e mestiça – até há pouco tão invisibilidade em novelas e comerciais, que se pensava algumas partes do Brasil como uma espécie de Reino da Dinamarca?? Óbvio que algo de podre sempre houve aí...

(...)

Não existe comparação entre o trabalho, sim, duro e a vida sofrida de imigrantes italianos e alemães (algumas levas recebendo 72 hectares de terra e outros subsídios governamentais aqui mesmo em Santa Cruz em 1849), e o trabalho escravo e tudo que ele implicou e implica até hoje. Ser escravizado, ser tido como escravo é uma situação mais do que humilhante – é aviltante da humanidade do ser, concebido como um animal comercializável. Houve a tentativa de destruição de qualquer vínculo cultural e total submissão ao racismo produzido pela igreja, estado e outras instituições “de pessoas de bem”. Somente a resistência negra e a rebelião na forma quilombos, sociedades secretas, sincretismos, grupos de sabotagem e, em último caso, suicídio, não deixou milhares e milhares de pessoas serem moral e economicamente esmagadas – embora algumas foram definitivamente destruídas em sua dignidade. Perto do que passaram os africanos e seus descendentes escravizados, italianos e alemães foram imensamente privilegiados.

E uma observação que fiz em outra postagem sobre Mandela: Heroísmo sem máculas, coisa difícil. Humanos, por definição, imperfeitos, né? O mito, como guia, é bom (ou pode ser bom), como disse o Jeferson. Mas se vamos a fundo... decepções nos esperam quase sempre.


*Milton Santos (foto) foi um dos maiores geógrafos brasileiros e do mundo. Intelectual independente (“outsider”, como ele mesmo dizia), propôs entendimentos sobre a sociedade e a economia que inspiram uma visão crítica, denunciando poderes opressores. Perguntado, disse que ser negro era difícil, pela história do povo africano no Brasil, assim como ser intelectual, porque pensar e fazer pensar não é algo que agrade há muitos.

**Existe um documentário muito bacana sobre Milton Santos. Fica uma dica, que dá uma panorama da sua vida e pensamento:

http://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM&feature=youtu.be

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