HISTÓRIA, IDENTIDADE ÉTNICA E EXCLUSÃO SOCIAL NA REGIÃO DE SANTA CRUZ DO SUL (RS - BRASIL) *** Artigos opinativos e outros comentários selecionados pelo autor *** IURI J. AZEREDO

2 de jan. de 2013

"Comentário selecionados" II

Mais alguns comentários postados tempos atrás em um meu outro blog e que também colo aqui, já que estão dentro do tema deste "polígrafo eletrônico".


17/10/2008

A força gabiru na “raça” gaúcha e brasileira: Inter, Campeão do Mundo!!!


Na data histórica de 17 de dezembro de 2006, escrevi um comentário que quero compartilhar com vocês:


Estou fazendo estas anotações enquanto escuto ao fundo a histeria colorada aqui na frente de casa, na Imigrante - que é, como vocês sabem, a “Meca” desse tipo de comemoração em Santa Cruz. Mesmo que eu não quisesse, estou no meio do rebuliço, no bom sentido!

Confesso que não dou muita bola (bola!) pra futebol. Meus tempos de fanatismo foram lá pelos 10 a 14 anos, por aí, quando, de verdade, ficava deprimido com derrotas do Inter e vivia o domingo com um rádio, acompanhando nervoso toda a jornada esportiva da Guaíba, que era a minha emissora predileta – por mais uma influência do meu pai, colorado que amaldiçoava o tempo todo o seu próprio time enquanto jogava, chamando os jogadores de podres, cornos, burros, etc. Eu achava aquilo irritante e não entendia bem “qual era a dele”, mas fui compreendendo que aqueles xingamentos, aquelas maldições lançadas com fúria aos jogadores eram, na verdade, uma forma de dissipar a tensão e demonstrar, ao avesso, a sua paixão.
Enfim, mesmo que "desligado" de futebol, revivi hoje um pouco daquela alegria infantil enorme que experimentava nos anos de 1970 – e creio que a alegria em futebol tem muito de “coisa de criança”, de simulacro, de brincadeira. Foi um prazer saltar aqui na sacada do meu AP e congratular-me com os vizinhos colorados a vitória espetacular contra o "invencível" Barça. Gritei de doer a garganta, participei da passeata e fiquei lá em baixo do edifício para ver a "volta olímpica" que os torcedores santa-cruzenses do Inter deram aqui pela avenida, todos a pé, num estado de euforia, de desforra, de encantamento – estavam quase foras de si de tanta felicidade.

E mais um time gaúcho mostrou sua "raça" no Japão. E esta "raça" inclui gente como Adriano Gabiru, Iarley e Ceará, ou seja, NORDESTINOS. Isso é pra calar a boca de uma “gauchada” com laivos xenófobos, que, até, pedem a separação do Brasil. Parece-me um discurso muito do elitista, à beira do racismo. Depois de muitas peleias com “os castelhanos” ao longo de séculos de definição de fronteiras, feitas por soldados de origem lusa, por mestiços, por negros “bucha de canhão” e também mercenários de tudo quanto é canto do mundo (incluindo a Prússia), garantindo assim as terras para assentar colonos de lugares como a Alemanha e Itália, se quer um “desquite”, já que alguns se acham de uma estirpe superior e vitimizados por outros estados do Brasil – algo que não se comprova nem mesmo por indicadores econômicos reais.

Aliás, nordestinos, mais propriamente cearenses, também colonizaram Santa Cruz do Sul. Em 1900 chegava uma leva de 90 pessoas do Ceará, que depois são fixados pela região santa-cruzense, conforme registrou o professor Hardy Martin. Vai que muito santa-cruzense, que se tem por “ariano puro”, não tem logo ali atrás uma “cruza” com os mesmos antepassados dos nossos bravos Adriano Gabiru e Ceará?!

Última coisa: Sem mentira, em todas as disputas que o Grêmio teve em nível nacional e internacional, incluindo o mundial interclubes, eu torci com afinco pelo tricolor. Graças aos deuses, consegui ampliar a brincadeira que é o mundo do futebol (pelo menos para os torcedores, que se nutrem da emoção de uma filiação e disputa que rigorosamente não passam de uma abstração mental com fins lúdicos), de forma a não me tornar prisioneiro da incorporação permanente de personagens sectários.

Viva o Brasil, viva o Rio Grade do Sul, viva o mundialmente consagrado Internacional!
E assim encerrei, com ardor, o meu comentário dirigido, à época, a amigos de uma lista de contatos por intermet. Dias depois, numa crônica do Luis Fernando Verissimo, publicada no jornal Zero Hora de 21 de dezembro de 2006, fiquei muito contente em ler algo bastante similar ao meu comentário. O consagrado escritor – e colorado de quatro costados – fala que é um equívoco se pensar que “A vitória do Inter em Tóquio seria mais um triunfo do estilo gaúcho de jogar futebol. (...) Um estilo forjado pelo clima europeu, por uma história de feitos varonis etc.”. E aí ele pergunta: “Mas como se explica que a maioria dos jogadores que estavam em Tóquio não era de gaúchos?” Ou seja, o campeonato mundial, diz Verissimo, foi vencido por “falsos gaúchos”, complementando, com seu bom humor e ironia: “No bom sentido, claro.”

Eu acho que o filho do também grande Erico Verissimo compreende muito bem o quanto é bobagem ou mesmo estupidez achar que existe algo muito diferente no Rio Grande do Sul que possa nos distinguir do “resto” do Brasil. Com certeza, existem diferenças, mas, muito mais, há semelhanças, identificações comuns e complementaridades, que nos fazem uma nação humanamente rica e cheia de positividades.




22/06/2011

A história não contada da “rua mais antiga de Santa Cruz”


Um trabalho de levantamento histórico muito interessante é o realizado por Armindo L. Müller, pesquisador diletante e pastor luterano. Em seu Dicionário Histórico e geográfico da região de Santa Cruz do Sul (Edunisc, 1999), traz muitas informações que, por sua vez, poderiam ser desdobradas em muitos outros trabalhos de historiografia e análise social local e regional. É deste pequeno livro, publicado pela Editora da Unisc em 1999, que retirei alguns dados para tecer o seguinte comentário:

A chamada via mais antiga de Santa Cruz do Sul, hoje Rua José Germano Frantz, foi obra empreendida por Delfino dos Santos Moraes, capataz do fazendeiro e tenente-coronel Abel Corrêa da Câmara – nome de onde se deriva a designação original “Picada do Abel”, mais tarde Picada Velha e, finalmente, Linha Santa Cruz. Nos trabalhos de abertura e demarcação, agregados, contratados e escravos sob comando de Delfino devem ter sido mobilizados, sendo todo trabalho às expensas dos cofres públicos da então Província do Rio Grande de São Pedro (e dizem que foi uma bolada grande). A empreitada começou a ser definida em 1847, mas só terminada no final de 1849, quando os primeiros colonos estavam sendo assentados nos lotes, incluindo ali o homenageado, Sr. Frantz. Mais anteriormente ainda, a via foi uma trilha indígena, ligando a região serrana do Vale do Rio Pardo e banda acima (Soledade, Cruz Alta etc.), passando pelo Faxinal do João Faria (onde surgiu a cidade de Santa Cruz), até Rio Pardo (Rio Jacuí), por onde circulavam indígenas da região, incluindo ervateiros guaranis assentados – já no século 18 – na Aldeia São Nicolau, nos arredores da cidade de Rio Pardo.

Já os lotes, foram demarcados pelo engenheiro Frederico Augusto de Vasconcelos Pereira Cabral, nome que não deixa dúvida da sua origem lusitana. Subcontratou os serviços de Guilherme Werlang e Francisco Dilemburg, teuto-desecndentes residindo no Brasil. Mais uma vez, os recursos para os trabalhos são governamentais e, muito provavelmente, usando-se mão de obra escrava para os “serviços mais pesados” (ao brancos, só cabia o mando).

Temos aí, numa via municipal, uma multiplicidade de relações sociais e históricas, envolvendo protagonistas de várias etnias e origens nacionais – comumente, muitos deles, invisibilizados injusta e erradamente, porque empobrecem a história santa-cruzense diversa e complexa.


*A rigor, aliás, a “via mais antiga de Santa Cruz” não é aquela cujo trecho se chama hoje Rua Germano Frantz. Vias que ligavam internamente as instalações (sobrado do dono, casas dos agregados, senzala, estrebarias, pastos, lavouras, olaria, armazéns etc.) do povoado do Faxinal do João Faria e, deste, a Rio Pardo, então sede da região, e a outras localidades próximas – arraiales, fazendas, rancharias avulsas e armazéns existentes em caminhos –, já instaladas antes da introdução de colonos germânicos em 1849; são vias mais antigas e usadas muito antes de qualquer início de assentamentos de colonos da Prússia, Silésia, Boêmia e outras localidades europeias do norte (lembrando que a Alemanha, propriamente, ainda não existia como estado-nação antes de 1871).

**O trecho ainda não calçado da Germano Frantz – apenas um ou dois quilômetros paralelos a Av. Orlando Oscar Baumhardt, mantendo a ligação da esquina do “Mercado Recanto” (ou a entrada ao Seminário São João Batista) até próximo ao “Mercado da Lili” (ou a velha fábrica de sapatos coloniais) –, mesmo com os loteamentos que dela se bifurcam, guarda uma espécie de encanto colonial em sua sinuosidade, aclives e declives, pedregulhos, passagens por arroios, charcos, matos, vistas de casas antigas, nesgas de lavouras e campos onde pastam bois e cavalos. Seria muito interessante que a pavimentação e o uso do entorno preservasse essas características autenticamente coloniais. Ao invés de asfalto, quem sabe um calçamento com pedras ou bloquetes na cor do solo avermelhado? Uma lei poderia regulamentar as construções e terraplenagens neste trecho, além de se tombarem casas e outras instalações, num programa de incentivo (subsídios concretos) aos proprietários, ou desapropriações. Neste trecho, há áreas onde se poderia instalar-se um parque público para o lazer da população local e preservação ambiental.

***A denominação Linha Santa Cruz – e do próprio município de Santa Cruz – alude à Fazenda ou Estância de Santa Cruz, localizada na região serrana do Vale do Rio Pardo (ou Centro-Serra), hoje parte do município de Lagoão (conforme Müller). A chamada Picada do Abel, finda sua abertura em 1849, com o incremento do movimento entre a serra, as comunidade de imigrantes, o Faxinal do João Faria e a sede regional, a cidade de Rio Pardo, passa, mais tarde, a ser conhecida como Linha Santa Cruz, por ser via de acesso à Fazenda de Santa Cruz – numa época em que as fazendas eram os núcleo populacionais mais densos e economicamente mais importantes, por conta da liderança social e política de seus donos (o proprietário da Fazenda da Santa Cruz era parente do presidente da Província...) e local de troca, compra e venda de mercadorias. Especula-se que, por suas vez, o nome “Fazenda de Santa Cruz” viria de uma antiga e grande cruz (“curuzu”), posta por indígenas missioneiros no alto de um pinheiro, a fim de indicarem a sua fé e servir de guia em suas andanças em tempos do domínio jesuítico na região do Vale do Rio Pardo – em torno de 1630, ou seja, cerca de 220 anos antes da introdução de imigrantes germânicos na região e 120 anos antes da instalação de súditos portugueses e trabalhadores negros escravizados no Vale do Rio Pardo.




07/02/2012

Não é piada



Por duas vezes, recebi um e-mail que parece uma reação “bem humorada” (mas, para mim, extremamente problemática) às ações afirmativas voltadas à promoção da comunidade negra brasileira. São 17 “artigos” falando em cotas para “alemães”, penalidades a supostas ofensas raciais, dias comemorativos etc. Quando recebi, fiz um comentário e remeti-o como “resposta” a amigos. No segundo caso, expliquei à pessoa (uma professora) que estava reproduzindo o mesmo comentário, conforme segue abaixo.


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Olá, profa.

No mês passado um outro amigo também remeteu, através de uma lista de conversas via e-mail que eu participo, esse “projeto de lei”. Obviamente, se trata de um chiste, que pretende, com ironia, criticar as ações afirmativas vinculadas à promoção da população negra brasileira – mas que também envolve a população indígena, beneficiária nas reservas de vaga, como ocorre no ProUni, entre outros programas federais bastante exitosos.

Na ocasião que recebi o texto, enviei uma “resposta”, que vou colar mais abaixo. É um rápido e informal comentário feito para/entre amigos da supracitada lista, na maioria “leigos” no debate. Está longe de esgotar a questão, mas pode ser uma abertura para uma argumentação mais consistente sobre a procedência ou não do uso de cotas no Brasil.

Agradeço a tua atenção. Tudo de bom e fico à disposição.


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Hehe!!

Como disse o nosso camarada, como uma piada provocativa, fica bem. Mas vai até aí!

De fato, chamar alguém de "alemão porco" é racismo e se deve enquadrar o cara na hora, sem hesitação. Chamar o cara de "negro" como referência de origem étnico-racial (racial só existe em sentido ideológico, não biológico) não é ofensa alguma. Chamar o cara de "negro sujo" já é ofensivo e é passível de enquadrar como racismo ou, no mínimo, injúria. Há um mal entendido geral de que chamar alguém de negro é ofensivo, quando os próprios militantes se intitulam de “movimento negro”. Os equívocos já começam por aí e depois só pioram!!!

No item 03 usa-se a palavra "denegrir", ou seja, “torná-lo negro”, ou seja, rebaixá-lo, ofendê-lo... Sem querer, estão aí palavras que demonstram o nosso racismo institucionalizado, internalizado - como usávamos tranquilamente na infância a palavra "negrisse" para dizer que era algo exagerado e feio...

O racismo contra negros tem uma história longa, triste, cruel e massiva. Negros foram animalizados para justificar a escravização e viveram no Brasil, por quase 400 anos, abaixo do pau e do mais abjeto rebaixamento, além de uma exploração absurda do trabalho e outros sujeições indescritíveis, brutais. O passado não se apaga e, no caso, é uma maldição que ainda não expirou. Basta olhar as os estudos e estatísticas e ver os patamares socioeconômicos onde está a esmagadora maioria da população negra no Brasil – a maior nação negra após a Nigéria. Cito só dois estudiosos ainda referencias no assunto: Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes [foto acima]. Produziram estudos profundos e reflexões que todos deveríamos ter ao menos uma noção – para embasarmos nossas posições com mais dados e menos preconceitos e chavões reacionários.

As pessoas de “origem alemã” – uma designação imprecisa para uma população tão vasta e diversa (e considerando que a Alemanha sequer existia como país até 1870), que emigrou do norte da Europa aqui para a região, forçadas pela miséria crescente e tremendas injustiças sociais lá existentes, e, boa parcela, dentro de programas subsidiados com recursos do governo brasileiro (aliás, gerados pelo trabalho escravo), esses indivíduos e famílias recebiam, em suas primeiras levas aqui para Santa Cruz, em meados do século XIX, cerca de 72 hectares, além de ferramentas, utensílios, provisões de alimentos; aos negros após a abolição, o que lhes foi oferecido depois de gerações e gerações negras trabalhando feito bois de canga ou coisa pior?? Daí os efeitos sociais e culturais perversos, que não desaparecem facilmente. E então são necessárias ações que surtam efeito já, imediatamente; que o neguinho não precise esperar mais 100 anos para, por exemplo, se formar médico, engenheiro, professor universitários; políticas afirmativas como as cotas (alguns chama de “discriminação positiva”) é isso: "burlar" (ou vencer) as consequências funestas do passado de modo mais rápido, sem mais delongas. (Depois de equalizada e construída uma igualdade de fato, extingue-se a ação.)

E não se pense que o pobre branco é igual ao pobre negro; o negro pobre tem um "plus" de adversidade para enfrentar desde o nascimento – justamente o racismo. Para quem duvidar, posso remeter um estudo local, aqui de Santa Cruz do Sul, feito pelo historiador Alan Seitenfus, “Mobilidade social e processo de (re)democratização do Brasil”, traçando comparativos entre a mobilidade socioeconômica de brancos e negros da mesma classe – e aí se verá quanta diferença faz a cor da pele e o cabelo pixaim...

Enfim, não se criou políticas afirmativas, caso das cotas, baseando-se numa vontade de “ser bonzinho com os negros”. No frigir dos ovos, toda a população brasileira se beneficia com a equalização étnico-racial, diminuindo-se disparidades e conflitos advindos dos fossos (fossas?) sociais. Não dá mais para aceitar que, como acontece em quase todas as universidade brasileiras, onde, em seu quadro de professores, um número tão diminuto de docentes seja de pessoas negras, estando longe de refletir o percentual de afrodescendentes existentes em nível local e nacional. Será que isso acontece por “pura” incapacidade, falta de vontade da “negrada”? Eu penso que não. É o racismo agindo pelos seus sutis, mas poderosos filtros.

No Brasil temos um “apartheid” mais eficiente do que o havido na África do Sul e EUA – porque "cordial" e "não dito". E isso não se rompe só com palavreados, grandiloquências ditas do alto de nossa brancura e seus privilégios (naturalizados), de que “TODOS SOMOS IGUAIS”. É preciso considerar os fatos, os números e a história, e agir aqui e agora para diminuir injustiças e sofrimentos.

Abraços!




12/10/2009

Por e-mail, contrapontos


Há anos estamos tentando colocar contrapontos a algo que acaba se configurando como uma pesada violência simbólica, na acepção trazida pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu: o estabelecimento de uma identidade dominante para a comunidade santa-cruzense, ou seja, “germânica” - palavra que já encerra uma miríade de associações, tal a sua abrangência e interpretações complexas.

Nestes empenhos de "germanizar" Santa Cruz, outros grupos são invisibilizados e pessoas que não se adequam a tal “origem” têm o seu “capital social” - outro termo de Bourdieu - desvalorizado, e permanecem numa marginalidade de pertencimento comunitário; seres subalternos, menosprezados, submetidos por uma historiografia e aparato simbólico-turístico exclusores, forjados por ideólogos da "germanidade" local.

Nada pessoal contra tais intelectuais, mas seus desejos, objetivos e empenhos não são inócuos e indolores. Por isso acredito que é preciso manter-se uma crítica a este tipo de “arrazoado” – quase sempre mais sentimental do que uma argumentação de fôlego –, para que não se continue impondo concepções marginalizadoras. Enfim, acredito que nem tudo se pode fazer em nome de orgulhos étnicos e viabilidade turística.

Como uma forma de "resistência", muitas pessoas usam e-mails, mostrando-se contrários, contrargumentando. Abaixo vou postar alguns meus, enviados esporadicamente para alguns destes intelectuais (dois deles, no caso), que têm amplo acesso à imprensa, a produções intelectuais (livros, fascículos, programas de rádio etc.) e são demandados para palestras seguidamente.

Não vou usar o nome das pessoas a quem se direcionaram as mensagens, até porque o que interessa mesmo é a argumentação e os dados que acabei apresentando de uma forma bem livre.

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Professora,

Tenho acompanhado os textos da senhora que saem na Gazeta do Sul. Li também aquele que saiu no livro Fragmentos de Vida organizado pelo professor Schneider. Pareces ser uma pessoa dedicada e sensível, mas, em alguns pontos, com todo respeito, não posso concordar com suas posições.

No último, na primeira parte, publicado em 23/05 na página 2 da Gazeta do Sul, a senhora parece, em minha opinião, repetir uma argumentação em superação. O historiador Mário Maestri, na revista Vox (IEL, número 7), faz uma referência a isso no artigo A lei do Silêncio: história e mito da imigração ítalo-gaúcha. A perspectiva apresentada por Maestri, creio, pode ser perfeitamente transposta, com as devidas particularidades, ao caso das colônias teuto-gaúchas, onde entraria, sem dúvida, Santa Cruz do Sul. Cito alguns trechos:

“Na Região Colonial Italiana, ainda hoje, é forte a recordação de violentos atos policiais contra colonos por falarem e cantarem em italiano; de crianças levando bilhetes para realizarem as compras familiares; do terror lingüístico conhecido pelos moradores das distantes linhas. Para essas memórias, os falares itálicos jamais teriam se recuperado dos golpes causados pela Lei do Silêncio. Essa interpretação nunca foi confirmada ou infirmada por estudos históricos. A explicação da dominância lingüística do português e do desaparecimento dos falares itálicos devido à repressão do Estado Novo aponta causa exógena à comunidade colonial para fenômeno essencialmente endógeno a ela – suas práticas lingüísticas.”

Adiante, no mesmo artigo, Maestri, ao comentar um trabalho acadêmico da historiadora Cláudia Mara Sganzerla – A lei do silêncio –, diz que, partindo do pressuposto que houve um “golpe fatal” da repressão lingüística durante o Estado Novo, a pesquisadora “abandonou as hipóteses iniciais ao, surpresa, não se deparar, para a região, com o decantado rosário de repressões e violências aos falares italianos. (...) Após contextualizar e hierarquizar os atos policiais e institucionais do Estado Novo, enquadrando-os espacial e temporalmente, Cláudia Mara traçou paisagem histórica bastante mais nuançada, precisa e complexa, rompendo com as interpretações maniqueístas correntes sobre a política de nacionalização da região. (...) Sem descurar as seqüelas das violências varguistas, corroborando investigações lingüísticas concluídas e em conclusão, Cláudia Mara sugere que as razões últimas da superação do talian sejam mais estruturais, encontrando-se aquém e além da Lei do Silêncio: crescente inserção da Região Colonial Italiana na economia nacional; desenvolvimento da mídia e da rede de ensino; interesse dos pais que os filhos dominassem o português, etc. A Lei do Silêncio: Repressão e nacionalização no Estado Novo em Guaporé (1937- 1945) [esse é o título do trabalho que Maestri está comentando], de Cláudia Mara Sganzerla, certamente apoiará outros estudos que ampliem a área analisada e, através da objetivação crítica dos fatos analisados, contribuam à superação da ainda importante opacidade criada por visões mitológicas e ideológicas do passado sulino e brasileiro.”

Senhora, a sua defesa de que “a diversidade existe, mas não é expressiva, historicamente falando, e muito menos, ‘desde os seus primórdios’ [onde parece citar-me sem fazer referência ao meu nome]”, parece querer legitimar a exclusão de outros grupos étnicos da formação de Santa Cruz do Sul, menosprezando a importância de inúmeras pessoas que colaboraram na conformação do município, antes mesmo de 1849. Permita-me colocar abaixo três pequenos artigos que escrevi ano passado, a partir das reflexões que realizamos junto ao Coletivo de Estudos e Debates Étnicos e Culturais de Santa Cruz do Sul (Cedecs), que se referem, em especial, aos negros e negras. Os textos sintetizam um pouco do que penso e a necessidade de se relativizar a “origem alemã” do lugar. Embora sem pretensões, sem seguir o “rigor científico” – e considerando que foram feitos para um jornal popular e não uma revista acadêmica – são todos pautados em “pesquisas sérias”, incluindo os escritos do professor Sílvio Correa [não estão colocados aqui].


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Professora,

Continuo acompanhando seus artigos no jornal e, por circunstância, um último que li, na Gazeta do Sul de 6 e 7 de outubro de 2007, Die Oktoberfeste. E também continuo a dizer que admiro a sua dedicação apaixonada pelo resgate/construção da identidade teuto-descendente aqui em Santa Cruz. Mas há momento em que julgo haver, para além de romantismos históricos e “polianice” em relação a Oktober, um abuso à beira da ofensa. A quem a senhora se refere quando diz “Nossa Oktoberfest” e “nossa região”? Eu estou incluído? Também estou tentando entender o que significa "a cultura e as tradições daqueles que historicamente transformaram este espaço [suponho que seja a região de Santa Cruz] natural e cultural”. Vou ser repetitivo: Meus parentes e parentes de meus amigos santa-cruzenses sem sobrenomes “alemães” estão fora? Os imigrantes e teuto-descendentes fizeram todas as coisas sozinhos? Nunca houve cultura anterior aqui no Vale do Rio Pardo e mesmo em Santa Cruz? O que dizer do Faxinal do João Faria, por exemplo? Não existiu este povoado [que deu origem à cidade]? Não houve nenhuma interação? Não houve em meio às comunidades teutas outras pessoas de outras procedências? Não houve alguma influência, a não ser o que trouxeram do centro da miserável Europa de meados do século XIX? Parece-me algo que se choca frontalmente com todas as evidências e a básica historiografia que tente escapar de exageros ideológicos. Se a senhora luta pela afirmação de uma identidade “alemã” para Santa Cruz, por outro lado, eu e muitas outras pessoas temos nos empenhado em “abrir” as perspectivas identitárias para algo integrador e policultural, evitando exclusões (sempre me vem à cabeça que será muito improvável que uma soberana da Oktober seja uma negra, mesmo que seus tataravôs tenham nascido aqui no município e a moça seja tão ou mais lindas que nossas doces Rapunzéis). Noto uma violência tremenda nisso, que é preciso avaliar muito bem os impactos.


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Prezada professora,

Muito importante as suas preocupações manifestadas no artigo “Nossa Linha Santa Cruz”. E uma oportunidade para irmos até além, percebendo que sempre há uma composição de gentes envolvidas na formação de uma comunidade, mesmo que pequena. Caso contrário, se acreditarmos em “purezas” e “direitos maiores” de um grupo, bem fácil caímos na discriminação e seus subprodutos perversos e que tanta dor já causaram (e ainda causam) à humanidade. E isso vale pra qualquer grupo social ou étnico-racial.

A senhora diz “Nós vivemos aqui e agora, antes de nós outros vieram e depois de nós outros viveram e depois de nós viverão. Não podemos perder de vista esta dimensão temporal histórica, social e cultural que constitui e constrói nosso lugar.”

Acho certíssimo e por isso até podemos recuar ainda mais quando falamos em Santa Cruz do Sul e em Linha Santa Cruz. A senhora sabe que devemos considerar que a picada se constrói em torno de antiguíssimas trilhas de povos indígenas (e depois caminhos de tropeiros vagos) que circulavam a região desde milênios, descendo e subindo a serra, do planalto até o rio Jacuí, limite natural com o pampa gaúcho.

A senhora também sabe que a picada foi originalmente aberta por trabalhadores negros e peões sob mando de empreiteiros e outros servidores pagos com recursos públicos, e que ganhou o nome de Picada do Abel – antes de se chamar Linha Santa Cruz –, alusão ao empreiteiro contratado anos antes da introdução dos primeiros 12 assentados, o sr. Abel Corrêa da Câmara – mas que acabou sendo levada a cabo (por outorga da lei provincial nº 111, de 6 de dezembro de 1847) por outro empreiteiro, Delfino dos Santos Moraes.

A senhora sabe que, a rigor, se trata de uma licença ideológica se dizer que estas primeiras levas são de “alemães”, já que não há o país e que muitos, mesmo considerando a divisão territorial européia de hoje, seriam poloneses (caso de 11 pessoas da primeira leva de 12). *A propósito, segue mais abaixo o comentário que publiquei no meu blog falando justamente disso [não colocado aqui].

Também dizer que eram terras despovoadas é impreciso, professora. Já há informações suficientes para demonstrar-se que toda a colonização com povos germânicos e outras gentes no Vale do Rio Pardo não se dá num vazio populacional. Como mencionei, considere-se os grupos indígenas que aqui se assentavam e circulavam sistematicamente desde séculos (até reduções jesuítico-guaranis tivemos nos anos de 1630 aqui no vale – inclusive uma em pleno território de Santa Cruz, a redução San Cristóbal, com 950 pessoas); considere-se os aquilombamentos, com negros e outros “parias” fugidos das cidades e fazendas na região, em especial de Rio Pardo, embretados em matas e montanhas (e sempre recuando na medida que os loteamentos rurais vão expandindo-se pela serra); considere-se os ocupantes e sesmeiros luso-brasileiros, trabalhadores negros e outros agregados que aqui estavam estabelecidos e conformavam o Faxinal do João Faria e rancharias ainda mais modestas espalhadas nos arredores.

Não entendo como esta riqueza de gentes, de referências geográfica, sociais e culturais é desprestigiada e mesmo desconstituída com discursos que forçam exclusivismos e purezas que me parecem mais fetiches de identidades étnico-raciais, cujos pressupostos, a menor contraposição seriamente embasada, “se desmancham no ar”, aludindo a outro intelectual alemão admirável, Karl Heinrich Marx. **Também a propósito, segue outro comentário sobre o assunto que postei no meu blog [não colocado aqui].

Agradeço a atenção e desejo tudo de bom.


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Prezado:

Leio esporadicamente com muito interesse a sua coluna no Riovale. Dias atrás, um fragmento me chamou a atenção: havia uma crítica a manifestações questionando o questionamento que historiadores e ativistas têm colocado na imprensa. O chapéu me serviu e então resolvi, cordialmente, mandar-lhe este e-mail.

Não se trata, como sempre digo, de menosprezar, muito menos negar toda a carga de dificuldades, esforço e sofrimento de milhares de indivíduos e famílias imigrantes e descendentes que se assentaram na região de Santa Cruz do Sul, em especial (mas não unicamente) alemãs. O questionamento se refere ao tom grandiloquente e mitificador, que parece tentar concentrar todas as virtudes em um ou dois grupos específicos, esquecendo que somos, independente de referências geográficas e culturais, seres humanos...

Recentemente, o senhor deve ter acompanhado, registrou-se os “130 anos da presença italiana no RS”. O caderno de cultura do jornal Zero Hora publicou uma série de textos, cujo enfoque e conclusões são perfeitamente aplicáveis para o caso da “presença alemã” no estado: recupera-se “a dimensão humana da vida da colônia, para além dos discursos laudatórios”. No artigo da professora Corteze, destaca-se que “O mito de um colono predestinado simplifica, estereotipa e empobrece a complexa história da imigração italiana.” No do professor Maestri, levanta-se a idealização de muita produção historiográfica, que escamoteia “contradições, tropeços e desastres”, propondo-se que o “progresso” da região deriva de uma essencialidade étnica do colono itálico, em contraposição (mesmo que não mencionada) aos povos nativos, caboclos, afro-descendentes etc., que “fracassaram” por “razões intrínsecas à raça”. Só para citar mais um artigo, da lingüista Florence Carboni, que aponta a simplificação ingênua de acredita que os falares itálicos nas colônias da serra gaúcha sucumbiram por conta tão somente restrições que ocorreram durante um período (três anos, mais exatamente) do governo de Getúlio Vargas, que, aliás, flertou por longo tempo com os países do Eixo...


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Senhor,

Muito interessante a sua crônica na GS de quarta-feira, 21/03. Aliás, acompanho-as sempre que possível, às vezes lendo na corrida, desde quando saía no Riovale. Penso sempre em fazer algum comentário, mas na hora “H”, acabo me envolvendo com meus afazeres, e perco a “inspiração súbita”.

Como me interesso pela “questão étnica”, as inter-relações entre grupos – ainda mais em nossa região –, prestei um pouco mais de atenção no seu último texto. E ponderei que a consideração final, de que não houve “interpenetração social e cultural” entre ciganos, tropeiros, negros – poderíamos falar de índios e diversos outros grupos migrantes e imigrantes – pode ser relativizada ou vista de outra forma. Para mim, não existe convivência, por mínima que seja, que não implique em mútuas, diversas, sutis ou “descaradas” interpenetrações culturais, sociais, etc. Um exemplo prosaico: o hábito do chimarrão. Acho que não se pode dizer que na região da hoje Alemanha, havia o consumo da erva-mate. Pra ficar no campo da gastronomia ainda: e o que dizer do consumo de feijão – algo aprendido pelos colonos nos primeiros dias de chegada ao Brasil? (Caso disponha de algum tempo, mando-lhe um comentário meu falando sobre as memórias de Luis Panke e a relação que estabeleci entre a mencionada leguminosa e os imigrantes em Rio Pardinho.)

Outra observação: Em relação aos negros, não creio que se possam reduzir as relações entre imigrantes teutos (entre outros) e seus descendentes como uma “acolhida” – mesmo que isso tenha de fato acontecido e seja algo louvável, emocionante, mesmo. Apesar das “proibições”, houve na região imigrantes que possuíram escravos, além de sistemas de “apadrinhamento” que, ao cabo, podem ser caracterizados com um regime de trabalho de servidão. A situação de proscritos – vivendo aquilombados em vários pontos do Vale do Rio Pardo, já bem antes de 1849 –, de miserabilidade, de discriminação sistemática – apoiada numa poderosa ideologia racista – de negros e mestiços (não-brancos em geral) os colocavam (e ainda colocam, basta ver os dados sócio-econômicos do Brasil de hoje) em situações de subalternidade, de submissão, de exploração medonhas. Nas zonas de colonização isso também aconteceu.

Penso que na “saga da colonização” está também a saga ou a tragédia do povo afro-descendente, dos autóctones americanos, de outros tantos povos que por aqui estavam e estão – até mesmo ciganos, grupo, como sabes, originado na mítica Índia, mantendo, ainda, explicitamente, elementos culturais daquele distante oriente. Ou seja, a saga não é algo feito em isolamento, creio eu. É algo complexo, cheio de “detalhes”, para além de romantismos. A saga dos colonos é a saga de todos nós, brasileiros, seres inapelável e culturalmente híbridos, onde não existem “purismos”. E me parece que “purismos” só servem para fertilizar “ovos de serpente” – algo que, infelizmente, não foi superado, mesmo com tantos exemplos de matança horríveis em nome de credos de vários tipos.

Agradeço a atenção. Abraço fraternal.

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